domingo, 30 de novembro de 2014

Prelúdio 02

A rua estava tão convidativa quanto um prato frio de sopa sem sal. Por isso mesmo ele terminou de amarrar os tênis, trancou a porta e saiu. Usou todo seu arsenal de bom dias e como vais e tudo bens que ele tinha nos bolsos, e descobriu que eles acabaram muito mais rápido que o caminho até a esquina.

Parou no boteco-padaria da esquina, pediu um na chapa e um café com leite. Quente, pois não fazia diferença ter pressa para esfriar. Observava o mundo como quem observa um zoológico, diferentes espécies e formas de vida simples. Andava envolvido numa bolha individual de indiferença e silêncio, e muitas vezes tinha certeza que ele estava embaixo dágua, dada a velocidade e clareza que tudo acontecia.

Não usava drogas não por uma questão de princípios, mas por saber que seria uma overdose: muitas coisas que o cercavam já eram uma droga. Sorriu sozinho um sorriso frio... e se perguntou quem mais teria um senso de humor genuíno como o seu.

Ouviu naquela manhã que sua ex estava com um cara, feliz e realizada. Muito melhor que ele mesmo, alguns diziam. Ora, ele não tinha dúvidas. Sua diversão era saber não se ela pensava ou não, mas a certeza do quanto ela pensava nele, e a intensidade disso.

Lembrava dos olhos dela no escuro, olhando fixos nos dele, as pupilas dilatadas brilhando aquele brilho escuro de pedra polida, fundos como o abismo, um labirinto de significados. Lembrava dos suspiros que ela deu em seu peito, dormindo pesado. Lembrou do riso dela, ecos de um passado mal assombrado, e sorriu de novo um sorriso de prazer quase maldoso. Em quem você acha que ela pensa quando você abraça ela a noite no quarto, campeão? Em quem você acha que ela pensa naqueles momentos longos de silêncio dela, quando ela vai pra longe e te diz que não é nada? Bingo, campeão. Ainda que ela tenha um filho seu, ela sempre vai olhar pra criança e ter certeza que deveria ser minha, então ela vai ser sim um pouco minha também.

Riu baixinho sozinho no balcão, pensando que isso daria uma estória ótima, que ele precisaria elaborar a idéia. Anotou mentalmente no bloco mental do esquecimento. Logo isso passaria também, como ela também passou. Quanto tempo agora? ... Hm, mais de dez anos. Deus, o tempo está desregulado, pensou, e lembrou dos vasos de planta que num dia estavam verdes, e quando ele olhava de novo, estavam secos. Quantos dias se passavam antes que ele tivesse a real noção das coisas? E por que algumas coisas tão antigas ainda teimavam em não secar e morrer, diabos?

Foi até a praça com dois pães, esperava jogar para os pombos. Pombos são como ratos, estão em todo lugar nesta cidade fodida. Escolha: Um rato de terno que vai te roubar até a carne dos ossos, ou um pombo de terno que vai cagar na sua cabeça até te cobrir de merda, como uma vela derretida até a metade? Bom, preferia pombos a ratos na praça.

Jogou os pães esmigalhados aos poucos, um autômato. Olhou com interesse a fome dos pombos. Animais maravilhosos... Qualquer coisa que se jogasse a eles, eles devorariam em minutos, com felicidade e entusiasmo cegos. Como qualquer ser humano carente e apaixonado. Comeriam até se empanturrarem. Mas pombos tem asas, e ele não tinha mais, pensou com tristeza. Não poderia voar nunca mais - maldita hora em que teve asas, e provou os céus, as nuvens, o vento no rosto... se empanturrou de vida. Agora, sem asas, era pouco mais que um rato, vivendo catando e raspando aqui e ali, sem perspectiva de ter asas, pois ratos não tem asas nesta cidade - a natureza ainda não aceitava híbridos, contente-se com os meandros do esgoto e os outros ratos felizes no lixo.

Sentiu-se miserável, mas havia um quê de conforto e paz nisso. Corria riscos por esporte, para testar seus palpites, e não raro, acertava. Um exemplo disso era convidar as pessoas, para antes de ter a resposta, se deliciar como numa loteria tendo quase certeza da negativa delas. Mais ainda quando as pessoas se contradiziam, dizendo mil coisas e então se esquivando educadamente repetidas vezes.

Recebeu uma mensagem então de uma amiga, mostrando que ela havia dito publicamente algo tão horrorosamente tendencioso de saudades que qualquer um sentiria-se envergonhado. É... algumas feridas não fecham. Que ironia, amor bastardo amor, que fez mais pessoas sofrerem e chorarem que todas as guerras juntas, pois guerra é algo imbecil, assim como se apaixonar.

Buscou no íntimo se ainda havia algum sentimento, mas não havia. Só o silêncio, e a curiosidade acadêmica de observar como os agentes sociais agiam e reagiriam, como ratinhos de laboratório. Fazia apostas com as facetas de sua mente, de quanto tempo demoraria para alguém apaixonado chorar amarga e dolorosamente. Subitamente, queria pipocas.

Andou pelas ruas movimentadas do bairro, alheio a tudo, invísivel. Comprou as pipocas e comeu todas, tendo o cuidado de pegar e mastigar uma de cada vez.

Esquecia, para não lembrar. Sua memória era incrível, e ele um dia aprendeu a desligar ela. O problema é que ela sempre acordava, como um vampiro num filme B de terror, que sugava sua alegria, seu sorriso e seu entorpecimento, voltando a ver a realidade nua e crua e caricata como ela é.

Quando percebeu, estava sentado na poltrona de casa novamente, e encostou a cabeça atrás, os olhos fechados, e por mais que não quisesse, pensou na música da banda (que já acabou - não pode ser coincidência apenas) que dizia que ainda era cedo. E com o playback mental, lembrou de quantos sorrisos já teve e já foi presenteado, e arrepio subiu sua espinha de pensar que receberia outros na vida.

Preferiu cochilar um pouco.


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