sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Prelúdio 01

Mais uma vez a madrugada com seus lamúrios e tristezas. Mais uma vez. Não que ele não contasse com isso, mas observou distante isso acontecer.

Levantou-se do sofá onde cochilara por algumas horas, foi até o banheiro. No caminho, deu o play no MP3, e Bauhaus começou a repetir que Bela Lugosi estava morto. Ah, conte outra. Bogart também, sua infância também.

No banheiro ele urinou sentado, por pura preguiça. Observou que os tapetes estavam alinhados com os rejuntes do piso, e notou a coincidência. Suspirou e levantou-se, desta vez lembrou-se de dar a descarga. Olhando a pia, notou a garrafa de cerveja preta vazia, que virou em algum momento um porta escovas, e não conseguia se lembrar quando isso aconteceu. Não a garrafa, mas escovar os dentes. Pode ter sido esta manhã, ou a manhã passada, ele pensou e franziu o cenho.

No silêncio do seu apartamento, no escuro da madrugada - pois pra ele sempre era uma espécie de madrugada, onde ele via apenas as mudanças das cores no céu, mas a hora era sempre a mesma dentro dele, como um relógio quebrado que guardamos por ter sido especial um dia, pasme a ironia, num tempo distante e esquecido - ele pensou na sua vida.

Pensou, ou melhor, não pensou em nada. Olhou a roupa separada para o trabalho, os sapatos jogados perto da porta, e lembrou com melancolia do dia em que comprara o par. Era um dia feliz, provavelmente natal, ou não. Sabia que logo eles iriam pro lixo.

Suspirou e foi até a poltrona. Pegou o cinzeiro de vidro grosso e com habilidade ímpar, suspirou sonhos, risos, amores e fumaça de seu charuto barato. "Chocolate", dizia a embalagem. Chocolate uma ova. Sabor "incêndio" seria apropriado, ou "rescaldo", pelo que sobrou do seu antigo eu.

Sabia que a garrafa de rum estava no fim, e riu com desdém, apenas mais um detalhe no quadro todo. Sua vida era um misto de pegadinhas no melhor estilo Lei de Murphy e momentos de genialidade incomum. Bom, tudo tem de ter um lado ruim, certo?

Olhou seu computador e se sentiu tentado a escrever. Escrever ia ser bom. As pessoas geralmente gostavam do que ele escrevia. Era isso que ele fazia, ele escrevia e quase ninguém lia. Mas não seriam todos assim? Não. Ele tinha certeza que quase ninguém lia, e quase ninguém se importava, e ele sabia disso, e retribuía a gentileza com prazer quase sexual.

Não escreveu. Sentou-se no sofá na meia luz da luminária de canto, a única parte iluminada da sala.
Pensou, e decidiu continuar não pensando em nada, apenas deliciando-se com o silêncio do ócio, observando-se a si mesmo pelos olhos de sua mente sentado no canto da sala, iluminado do peito pra baixo pela luz da luminária.

Fechou os olhos e ouviu seus vizinhos dormindo abraçados de conchinha, sorrindo em seus sonhos. Sentiu-se não só, mas quase que amaldiçoado por simplesmente sentir algo. Ou não sentir mais nada, quem sabe?

Agora, mais do que nunca, estava convencido que ele era o protagonista num filme noir, só que o filme era sua vida, mostrada num cinema quase vazio, onde provavelmente dois bêbados dormiam nos cantos, e um desempregado entrou por engano e ficou por não ter onde ir. Sucesso de bilheteria, aclamado pela crítica, aplausos, senhoras e senhores. Saídas de emergência estão sinalizadas.

Olhou o toco do charuto apagado no cinzeiro já frio, e se perguntou que tipo de bastardo tinha enrolado aquela porcaria com retalhos de tabaco vagabundo com rebarbas de papel A4, provavelmente o A4 que ele havia impresso seus poemas e submetido anos atrás para alguma editora mediana. Reciclagem, eles alegam. se pudesse segurar seu coração frio, jogaria o toco de charuto vagabundo que ele mesmo enrolou seus sonhos e amores no lixo, lavaria o cinzeiro, e jogaria pela janela. Foda-se, amor nunca mais; mas por não poder, simplesmente colocou o cinzeiro sujo e cheio do seu lado.

Não sabia ainda o que iria fazer, mas iria dar um jeito. Todo herói (no caso dele, talvez um anti-herói) dava um jeito nos filmes noir. Sentiu-se preto e branco, o rosto endurecido e seco. Até nisso a anacronia. Ele não era um galã de seriado jovem, com cabelos encaracolados e sotaque descolado. Era um dinossauro, um galã aborrecido e em preto e branco, Bogart com trilha de Bauhaus. Escrevia, uma arte desprezada e esquecida, quase que de uma civilização extinta. Perfeito.

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